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Quanto custa um ano de vida?
Essa pergunta não existe apenas na cabeça de burocratas sem coração. Ela está no centro de um debate mundial sobre saúde e economia
Quanto a sociedade deve gastar para dar a um doente um ano a mais de vida? R$ 50 mil? R$ 150 mil? R$ 1 milhão? A partir de que limite o Estado, os planos de saúde e as famílias devem desistir de custear tratamentos que prolongam a vida por alguns meses? As questões são duras, mas não residem apenas na cabeça dos burocratas sem coração. Estão no centro de um debate mundial que o Brasil precisa enfrentar. Quando confrontada com a escassez de recursos destinados à saúde, muita gente diz que "a vida não tem preço". Essa expressão altruísta nos dá conforto, mas nos afasta de uma discussão urgente.
A questão do preço da vida ganhou as manchetes devido à polêmica sobre a reforma do sistema de saúde nos Estados Unidos. Lá, os custos da saúde consomem 17% do PIB. Ainda assim, 46 milhões de cidadãos não têm nenhuma cobertura médica. O presidente Barack Obama defende a adoção de critérios que tornem mais racional o uso do dinheiro público. Isso permitiria investir a maior parte dos recursos em tratamentos que garantam mais anos de vida com qualidade. Com o dinheiro economizado, seria possível oferecer pelo menos um pacote básico de serviços de saúde a toda a população.
Muita gente não gostou. A oposição acusou Obama de tentar criar um painel da morte, um comitê que decidiria sobre a eutanásia dos velhinhos que não tivessem condições de pagar suas contas hospitalares. Os opositores da reforma da saúde dizem que o governo quer colocar um preço na vida humana. Obama recomendou a alguns governadores que evitem mencionar o termo racionamento dos gastos com saúde. "Racionar virou uma palavra suja", escreveu o professor de bioética Peter Singer, da Universidade Princeton, num artigo publicado recentemente na revista do The New York Times.
Não se pode falar abertamente sobre racionamento, mas ele é praticado, no mundo todo, o tempo todo pelos governos, pelos planos de saúde e até pelas famílias que decidem quanto podem ou estão dispostas a gastar com seus doentes. A forma mais simples de racionamento é excluir parte da população do acesso à saúde. Ou criar barreiras que o dificultem (longas filas para conseguir marcar uma consulta, espera de meses para realizar um exame, distribuição irregular de medicamentos). Os brasileiros conhecem bem essa prática. Esse tipo de racionamento não é inteligente. Com o agravamento das doenças que deixam de ser detectadas e tratadas na fase inicial, se gasta mais dinheiro e as chances de cura diminuem.
Se o racionamento é inevitável, é melhor que seja explícito e planejado. E que as regras sejam claras e válidas para todos. As decisões são especialmente difíceis no caso de tratamentos muito caros e que, em vez de curar, apenas prolongam a vida. A maioria das novas drogas contra o câncer se enquadra nesse grupo. Um exemplo é o remédio Sutent (sunitinibe), aprovado para uso contra o câncer renal quando ele já apresenta metástases. O medicamento é considerado um grande avanço. Antes dele, os pacientes viviam um ano depois do diagnóstico. Com o Sutent, uma droga oral muito mais tolerável, os pacientes vivem em média dois anos. Alguns vivem mais. Outros, menos. Nem sempre com disposição. Na maior parte dos casos, a doença volta a dar sinais 11 meses depois do diagnóstico. Esse benefício compensa o custo de R$ 14 mil por mês? "É preciso que a sociedade discuta se está disposta a arcar com esses tratamentos", diz o oncologista clínico José Augusto Rinck Júnior, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. "A decisão não pode ficar nas mãos do médico que lida com dramas individuais e quer aliviar o sofrimento de seus pacientes”.
O administrador de empresas João Carlos Muniz Santiago, de 62 anos, sofre de câncer renal. Teve metástases no pulmão. "Não sei se eu venderia meu apartamento para comprar um remédio sem ter a garantia de que ele iria funcionar", diz. Santiago toma Sutent desde março de 2008. Pagou as duas primeiras caixas. As outras oito que consumiu até agora foram fornecidas pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo depois que ele entrou com uma ação judicial. O tratamento parece estar conseguindo barrar o avanço da doença. Os últimos exames não revelaram nenhum sinal de câncer no pulmão. "Achei que fosse viver pouco. Agora já enxergo um horizonte", diz.
O número de ações contra o Ministério da Saúde cresceu seis vezes nos últimos quatro anos. "Se o paciente tem uma prescrição médica, não cabe ao Estado decidir se ele deve ser tratado ou não. Sua obrigação é fornecer o remédio", diz a advogada especializada em causas sobre saúde Renata Vilhena Silva.
A falta de orientação clara sobre o que deve ou não ser oferecido a cada cidadão mantém os médicos sob pressão constante. Algumas famílias insistem que eles prescrevam drogas caríssimas mesmo quando os especialistas não acreditam que o tratamento fará diferença. Médicos e pacientes praticam uma medicina baseada na esperança e não em evidências científicas. Por outro lado, muitos pacientes se enquadram no grupo que poderia ser beneficiado - ou até mesmo salvo - pelo tratamento, mas o Ministério da Saúde demora anos para atualizar os protocolos clínicos e oferecer os remédios no SUS. Para receber as drogas mais modernas, os cidadãos processam a União, os Estados ou ambos com base no artigo da Constituição segundo o qual saúde é direito de todos e um dever do Estado.
Fonte: Revista Época – 14/09